Entre Doces e Cantigas: A Presença dos Erês

Entre Doces e Cantigas: A Presença dos Erês

Depois de alguns dias em São José dos Campos, visitando meu filho e meus netos, estamos de volta a São Vicente. É sempre bom poder passar um tempo com a família, especialmente com as crianças, que enchem a vida de alegria e dão aquele sentido especial às nossas jornadas. Mas agora, de volta para casa, é hora de iniciar os preparativos para uma das festas mais bonitas e significativas dentro da Umbanda: a festa de Cosme e Damião.

Na Umbanda, a festa de Cosme e Damião é celebrada no dia 27 de setembro. No entanto, neste ano, optamos por realizar a comemoração no dia 26, uma sexta-feira, para que fique mais próximo da data oficial e ao mesmo tempo facilite a participação de todos. Esta comemoração não é apenas uma tradição, mas um verdadeiro encontro espiritual e comunitário, onde fé, alegria e união se misturam em um só ambiente.

A linha de trabalho espiritual que se manifesta nesta ocasião é conhecida por vários nomes dentro da Umbanda e também em outros cultos de matriz africana. Alguns a chamam de Linha de Cosme e Damião, outros preferem Linha das Ibejadas, Linha dos Erês, Linha de Yori, Linha das Crianças, e certamente há ainda outras formas de nomear essa mesma força espiritual. No Núcleo Mata Verde, optamos por chamá-la de Linha das Crianças.

É importante destacar, no entanto, que nenhum desses nomes traduz com exatidão a essência desses trabalhadores espirituais. A Linha das Crianças é um dos maiores mistérios da Umbanda. Mesmo entre iniciados, sua compreensão profunda é desafiadora. Entre os leigos, então, essa compreensão se torna ainda mais distante. Talvez por isso muitos umbandistas não se preocupem em se aprofundar nesse mistério, preferindo vivenciar a alegria e a pureza que ele transmite sem buscar explicações mais complexas.

Mas há algo que precisa ser sempre lembrado: apesar da aparência frágil, inocente e infantil, os espíritos que trabalham nessa linha possuem uma força espiritual imensa, muitas vezes maior que a de outras linhas conhecidas da Umbanda. Enganam-se os que pensam que, por se manifestarem como crianças, eles são fracos ou inexperientes. Pelo contrário, já foi dito e repetido dentro dos terreiros: o trabalho realizado pela Linha das Crianças possui uma força espiritual tão intensa que permanece firme e inabalável. Essa energia é absoluta dentro de sua vibração e, justamente por isso, é cercada de tanto respeito.

Em outros momentos já escrevi sobre esse mistério com mais profundidade, abordando quem foram os santos Cosme e Damião, o que é Ibeji no Candomblé, o que significa Erê, e também desfazendo o equívoco comum de pensar que os espíritos da Linha das Crianças são apenas desencarnados em tenra idade, carentes de sua família terrena. Mas hoje quero falar de algo mais leve, mais simples e que todos podem compreender: a beleza da festa das crianças no terreiro.

No Núcleo Mata Verde, essa festa possui dois momentos muito especiais. O primeiro deles é a preparação. Desde os dias que antecedem o evento, há um clima de envolvimento, expectativa e alegria. Todos querem participar, seja ajudando nos enfeites, trazendo doces e bolos, enchendo bexigas coloridas ou simplesmente colaborando com aquilo que podem. Esse clima de união contagia a todos, e já na preparação a energia da Linha das Crianças começa a se manifestar, mesmo antes da festa começar oficialmente. É um estado de alegria coletiva, como se cada detalhe fosse um presente oferecido não apenas aos santos, mas também às próprias crianças da comunidade e às entidades espirituais que virão se manifestar.

O segundo momento é o dia da festa em si. Neste dia, o terreiro se transforma. A casa costuma ficar cheia, repleta de famílias inteiras. Vemos mães, pais, avós, tios, vizinhos e, claro, muitas crianças, todos reunidos para celebrar. É uma verdadeira festa popular dentro do espaço sagrado da Umbanda. Bolos, refrigerantes, doces e enfeites coloridos tomam conta do ambiente. As bexigas enchem o terreiro de cores, e o barulho alegre das crianças brincando se mistura ao toque dos atabaques e às cantigas que invocam a presença espiritual.

É comum que neste dia o Núcleo receba mais pessoas do que em outras giras. A festa realmente atrai, pois mistura o material com o espiritual de uma maneira única. Mas o ponto alto do evento não é apenas a festa externa, e sim a presença das “crianças espirituais”. Quando elas chegam, a vibração do ambiente se transforma completamente. Uma energia de pureza, inocência e alegria toma conta de todos os presentes. É um momento em que até os adultos mais sisudos se permitem sorrir, brincar, sentir-se leves, como se voltassem por instantes à própria infância.

No Núcleo Mata Verde existe uma organização para o trabalho dos médiuns durante a festa. Primeiro, os Abarés — médiuns mais antigos e experientes, que durante o ano todo já trabalham e dão consultas — são os primeiros a incorporar. Eles abrem o caminho e sustentam a energia inicial. Depois, Marquinhos, uma das crianças espirituais que comanda a festa no Núcleo, começa a chamar as demais entidades para os médiuns mais novos, chamados de Bojás.

Há um momento em que muitos médiuns já estão incorporados, e então a energia se espalha pelo terreiro inteiro. É como uma onda de alegria que invade todos os cantos, tocando cada pessoa, cada coração. Ao comando do Marquinhos, chega o momento do encerramento. As entidades vão desincorporando de seus médiuns, e o terreiro se acalma novamente. Mas é uma calma diferente: carregada de luz, de felicidade e de uma sensação profunda de missão cumprida.

A assistência, composta por todas as pessoas que participaram da festa, sai feliz e encantada. Muitos não conseguem explicar em palavras o que sentiram, mas guardam consigo uma energia diferente, como se tivessem sido lavados por dentro. Os médiuns e cambones, mesmo sentindo um cansaço natural no corpo físico, estão em estado de “Erê”: leves, alegres, como se tivessem recarregado suas forças de uma forma especial.

É uma noite maravilhosa de muito axé. Todos voltam para suas casas com o coração cheio e a alma em paz. Durante os dias seguintes, a festa ainda é lembrada nas conversas, nas memórias e nas risadas que escapam ao relembrar momentos vividos. E essa sensação de alegria permanece, como uma bênção que se estende no tempo.

Assim é a festa de Cosme e Damião no Núcleo Mata Verde. Mais do que uma celebração, ela é um momento de encontro com a pureza, com a espiritualidade e com a força dessas entidades que, com aparência de criança, nos ensinam a viver com mais simplicidade, leveza e fé. É também uma prova de que a Umbanda é feita de momentos de profundo mistério, mas também de muita alegria, união e amor.

Agora, depois de mais uma celebração, resta apenas esperar a próxima festa, sempre com a certeza de que será novamente um momento de bênçãos, de axé e de aprendizado.

São Vicente, 13/09/2025

Manoel Lopes

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