A Terra Está Sangrando e os Orixás Estão Chorando

A Terra Está Sangrando e os Orixás Estão Chorando
Reflexão sobre o mito de Exu e o mundo atual

Essa semana estou viajando. Vim para São José dos Campos, e mesmo longe de casa, mantenho um hábito que me acompanha há anos: escrever. Gosto de refletir, transformar pensamentos em palavras, dar forma a sentimentos que muitas vezes ficam soltos no coração. E hoje, olhando pela janela do lugar onde estou hospedado, algo me tocou profundamente. Vejo um mundo em conflito, dividido, machucado. Guerras, intolerância, discussões que viram ódio. E uma frase brotou do fundo da alma:
“A Terra está sangrando e os Orixás estão chorando.”

O Mundo Está Ferido

Vivemos tempos estranhos. As pessoas estão se afastando umas das outras, não por quilômetros, mas por ideias. É como se a gente tivesse esquecido que pensar diferente não nos torna inimigos. A polarização – aquela separação extrema de opiniões – virou o prato do dia. Política, religião, futebol, vacinas… qualquer assunto vira motivo para briga. Basta alguém pensar de forma diferente para surgir uma barreira. E essa barreira tem se transformado em muros altos, frios, perigosos.

Temos visto guerras em vários lugares do mundo. Milhares de pessoas morrendo, cidades destruídas, famílias chorando a perda de seus entes queridos. Crianças que jamais conhecerão a paz, jovens que só sabem o que é viver com medo. Tudo isso por quê? Muitas vezes, por orgulho, ganância, intolerância. Por não aceitar o outro como ele é. Por acreditar que a própria verdade é absoluta e deve ser imposta aos outros.

E no meio disso tudo, o planeta parece chorar. As árvores tombam, os rios secam, os mares se revoltam. A Terra está sangrando. E os Orixás – essas forças sagradas da natureza, que representam a vida, os elementos, os caminhos – também choram, porque veem seus filhos se destruindo.

O Mito de Exu

Foi nesse contexto que me lembrei de um antigo mito africano, muito conhecido nas tradições religiosas de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé. É o mito de Exu, o senhor dos caminhos, da comunicação, das encruzilhadas e dos encontros.

Conta-se que, um dia, Exu decidiu testar dois amigos que eram muito unidos. Ele colocou um gorro com duas cores – branco de um lado, vermelho do outro – e passou entre os dois, que estavam lavrando a terra. Um deles, ao vê-lo passar, comentou:
— Que lindo gorro branco!
O outro retrucou:
— Branco? Você está louco! Era vermelho!

A discussão começou pequena, como quase todas as brigas. Mas foi crescendo. Cada um defendendo com raiva o que tinha visto, sem querer ouvir o outro. Nenhum dos dois parou para pensar que talvez ambos estivessem certos, e que o gorro podia, sim, ter duas cores. A discussão ficou tão violenta que terminou com um deles matando o outro.

Mais tarde, Exu apareceu, rindo e mostrando o gorro bicolor. Mostrou que não mentiu, não enganou, apenas mostrou como as pessoas podem destruir até uma amizade por se recusarem a enxergar além do próprio ponto de vista.

A Lição de Exu para os Nossos Dias

O mito de Exu é mais atual do que nunca. Ele nos mostra como é perigoso insistir que só a nossa visão está certa. Mostra como o mundo se fere quando falta empatia, escuta e humildade. Em vez de conversar e tentar entender o lado do outro, a gente parte para a acusação, o julgamento, o ataque.

Quantas amizades já se perderam por causa de política? Quantas famílias já brigaram por religião? Quantas vezes fechamos o coração por não saber lidar com a diferença?

Exu, nesse mito, não é o causador do mal. Ele apenas revela o que já existe no interior das pessoas: a incapacidade de lidar com a diversidade, a teimosia, a raiva guardada. Ele é o espelho que mostra o que ainda precisamos curar em nós.

Orixás Chorando

Quando digo que os Orixás estão chorando, não é no sentido de tristeza apenas. É também um chamado. Eles choram para nos acordar. Nos lembram que viemos da Terra, da Água, do Fogo, do Ar. Que fazemos parte das Matas, da Humanidade, e também temos uma Alma. E que todos esses elementos vivem em equilíbrio — ou deveriam viver.

Quando um desses elementos está em desequilíbrio, o mundo sofre. Quando o respeito acaba, a vida se desequilibra. Os Orixás não pertencem a uma religião específica. Eles são símbolos profundos das forças da natureza. E hoje, essas forças estão gritando. Nos pedem mais união, mais escuta, mais sabedoria.

Uma Escolha Diária

A cada dia, temos a chance de escolher: ouvir ou gritar, acolher ou julgar, caminhar juntos ou cavar abismos. Podemos ser como os amigos do mito, cegos pelo orgulho, ou podemos aprender com Exu que a verdade pode ter mais de uma face.

Respeitar o diferente não significa abrir mão do que acreditamos. Significa entender que o outro tem o mesmo direito de acreditar em algo distinto. É possível conviver sem concordar. É possível amar sem controlar. É possível ser firme sem ser cruel.

Enquanto estou aqui em São José dos Campos, longe da rotina, percebo como é importante parar para pensar. Refletir sobre o que está acontecendo dentro e fora de nós. Não é só a política que está em crise. Não é só a religião que divide. É a humanidade que está ferida.

Mas ainda há esperança. A mesma encruzilhada onde Exu passou com seu gorro bicolor pode ser o lugar de um novo encontro. Podemos escolher olhar com mais cuidado, escutar com mais atenção e agir com mais compaixão.

A Terra sangra, sim. Mas pode ser curada. Os Orixás choram, mas também podem sorrir — se nós, seus filhos, nos lembrarmos do valor do respeito, da escuta e do amor.

Axé!

São José dos Campos, 03/08/2025

Pai Manoel Lopes

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